Agapito: o embaixador do Arapixuna - 06.05.2016


Agapito: o embaixador do Arapixuna

Em 1981 criamos a Biblioteca Boanerges Sena. Em 1988 comecei a estruturar o Projeto Memória Santarena. Adquiri uma filmadora Panasonic M9000 - grande e pesada - e passamos a colher depoimentos de personalidades que compõem a própria história política, social, esportiva, econômica, religiosa e folclórica de Santarém. Trabalho que continuo realizando, sem a frequência do início, agora numa Sony handycam -  pequena e leve - que cabe no bolso da calça. Hoje, mais de 50 entrevistados compõem a galeria dos nossos personagens.  

A partir de 2011 esses depoimentos começaram a ser transcritos e editados em formato de livros, sendo o primeiro o de José da Costa Pereira, famoso Zeca BBC, lançado por ocasião dos festejos dos 350 anos de Santarém. O último, o do seu Agapito, editado ano passado. Sexto livro editado: Zeca BBC, Dom Tiago, Isoca, Emir Bemerguy, Dica Frazão e Agapito.

 Agapito de Andrade Figueira foi o quarto personagem entrevistado. Entrevista realizada no dia 2 de abril de 1989, um domingo, no sítio do seu filho Paulo Figueira, na comunidade do Irurama, região do Eixo Forte.   

Estava com 72 anos. Perguntado se valeu à pena viver, respondeu ao Manuel Dutra, que o entrevistava:

"Quero ainda viver mais vinte anos para ver até que ponto vai chegar o nosso Brasil".

Seu Agapito foi um homem simples. Primeiro o conheci através das inúmeras estórias criadas com o seu nome. Estórias que envolviam sua pessoa em situações hilariantes. Depois o conheci pessoalmente através dos filhos, passamos a ter um relacionamento mais próximo e frequente.

Em novembro de 1990, em sua companhia, participei de uma pescaria no lago do Atumã, Alenquer. Os filhos Paulo, Djalma e Osvaldo de Andrade estavam presentes. A viagem de barco para o lago foi memorável. A bordo um sanfoneiro, acompanhado de zabumba e pandeiro, animava a vigem tocando sua música preferida, que ele pedia com insistência: "Entre tapas e beijos".

Em 1992 o convidei e ele aceitou vir conhecer a biblioteca do ICBS. Era sábado. Após a visita ficamos comendo peixe e tomando cerveja. Aos 75 anos aparentava boa saúde, comia bem e de tudo, acompanhava nossa turma na cerveja. Estava alegre, aceitou contar seus próprias "causos" - o que não gostava de fazer. Contou a última e disse que achou interessante. A piada da festa na sede do Luso América, em Arapixuna, que as meninas que não tinham sido convidadas foram "se inxirir" querendo dançar.

  No dia 24 de dezembro de 1993 participou na residência do genro e amigo Tarcísio Lopes, da festa do Natal. No dia seguinte continuava ao seu lado, agora no hospital, Tarcisio estava com um rim paralisado.

No dia primeiro de janeiro de 1994, uma sexta-feira, às quatro horas da tarde, sepultava o genro amigo. Tarcisio era diabético e abusou nas comemorações natalinas. Durante o velório, conversando com seu Agapito ele contou-me como tinha sido a festa na casa do Tarcisio: pitiú assada e ventrecha de pirarucu dava no meio da canela, tudo isso regado a 51, uísque, vinho e cerveja.

A morte do genro abalou o sogro. Cinco dias após o enterro seu Agapito era internado no Hospital São Camilo, suspeita de obstrução intestinal, conhecido nó na tripa. No outro dia, seis de janeiro, fui visitá-lo no hospital. Na saída conversei com a Dra. Eva Gentil. Fui informado que seu caso era irreversível.

Na manhã do dia seguinte (07/01/1994) fui avisado pelo Paulo Figueira da morte do seu Agapito. Faleceu aos 76 anos de idade. Homem honrado, amigo, respeitado por todos. Seu enterro foi bonito, os amigos de Arapixuna compareceram em peso lotando a Catedral. Foi sepultado no cemitério Nossa Senhora dos Mártires.

Agapito de Andrade Figueira foi um líder carismático, com influência na história política e religiosa da sua Arapixuna querida. Não acumulou bens materiais, doava mais do que recebia. Ajudava mais do que era ajudado.

Ao fazer de Santarém sua segunda morada virou lenda e as estórias com o seu nome ainda hoje continuam sendo contadas, empurradas pela força da sua popularidade. As primeiras depois de morto começaram a circular logo após a noticia do seu falecimento se espalhar pela cidade. Os autores anônimos brincavam com sua chegada ao céu.

Interessante destacar que esses autores não tinham autonomia sobre o personagem criado por eles. Estavam presos à sua forte personalidade, que impunha às estórias um padrão que correspondesse à sua maneira de ser. Por isso, nenhuma das brincadeiras criadas com o seu nome feriam a sua dignidade, desvirtuavam sua personalidade. Estavam, sim, ligadas ao homem simplório que era.

Mesmo não sendo capaz de compreender o porquê daquilo que ele chamava de "movimento" com o seu nome, conseguiu impor no folclórico personagem criado, seu perfil de homem honrado.

Devido a essas estórias seu Agapito de Andrade Figueira passou a ser conhecido na região e no resto do Brasil. Quem visitava Santarém e a elas era apresentado, se encarregava de levá-las para longe. E elas iam se espalhando como as sementes da samaumeira, atravessando rios, percorrendo quilômetros, levadas pelo vento e pelas águas. Piadas inocentes, nascidas da anônima criatividade popular.

Quando lhe perguntavam como foi que tudo aconteceu, seu Agapito respondia que deve ter sido por causa do seu nome, e acrescentava: “O povo que inventa. Não sei porque simpatizaram comigo. Nenhuma dessas piadas tem fundamento”.

O  filósofo romano Tito Lucrécio (99 - 55 AC) já dizia que nada pode nascer do nada assim, a primeira estória do seu Agapito não deve ter surgido do nada. Quem contou a primeira? Nem ele sabe, creio que ninguém sabe. Mas o Anésio Oliveira, que namorou uma das suas filhas, é lembrado como o iniciador das estórias que fizeram do seu Agapito o personagem que extrapolou o âmbito regional.

O certo é que elas surgiram, a platéia gostou, aprovou. Proliferaram novos causos ao sabor da criatividade de produtores anônimos, que antes do seu Agapito tiveram no pedreiro Timóteo farto material para suas estórias.

Agapito nasceu na comunidade ribeirinha do Arapixuna, próximo a Santarém, localizada no "Furo do Jari", acidente geográfico que liga o Rio Tapajós ao  Amazonas. Sempre se dedicou ao trabalho comunitário no Arapixuna e durante 14 anos foi presidente do clube Luso América. Na política foi partidário da antiga Arena e adversário ferrenho de Magalhães Barata.

Em 1989, aos 72 anos, dizia que queria ainda viver mais vinte anos para ver até que ponto chegaria o nosso Brasil. Infelizmente não conseguiu chegar ao século XXI para ver a transformação do Brasil, de Santarém, da sua  Arapixuna.

No dia 07 de janeiro de 1994 morreu o homem Agapito. Uma semana após ter falecido seu genro Tarcísio Lopes.

Morreu o homem, permaneceu a tradição do personagem. Tradição que precisa ser revigorada, retransmitida para as futuras gerações. Nossa intenção com "Agapito: o embaixador do Arapixuna" é não deixar os dois desaparecerem: as pegadas no caminho percorrido pelo homem e a tradição do personagem. 

 

Causos do Agapito

Foi assim que tudo começou, segundo a versão do Anésio Oliveira, que namorou uma das filhas do seu Agapito.

Um dia Anésio estava namorando quando passou em frente a casa do seu Agapito o carro da SUDAM. Na porta do carro estava escrito Centro Tecnológico. No centro da porta estava pintado uma grande letra C e dentro do C  a letra T.

Anésio então leu em voz alta o nome das letras: CT. Dito isso a namorada saiu do seu lado chorando, se retirou aborrecida com ele.

E por que desse choro da namorada, desse aborrecimento? É que lá no Arapixuna seu Agapito tinha uma mercearia, um pequeno comércio. De manhã quando o caboclo chegava  e pedia um quilo de sal ou outra mercadoria qualquer, ele respondia, olha "cê tê" (se tiver) eu te vendo. Essa brincadeira rendeu-lhe o apelido de "cê tê", ficando assim conhecido por pequena parte da comunidade arapixunense. Apelido que a família não gostava.

Assim, namorar uma filha e tomar  conhecimento desse apelido em primeira mão em Santarém, deu ao Anésio o título de criador oficial dos "Causos do Agapito".

** Mais rapaz, depois dizem que só nós do sítio que semos besta. Esse tar de Jacques Cousteau nem bem passou uma semana aqui já tão dando a Amazônia pra ele. Já deram, já viste na TV que até tá escrito Amazônia de Jacques Cousteau, tá escrito lá. É por isso que fico reberde, mas reberde de dá nujo, de dá raiva.

-  Mas por que seu Agapito?

- A Globo já não deu a Amazônia pro home, só porque é estrangeiro. Olha, vou contar uma coisa pra ti que tu não sabia. Eu tenho mais de 40 anos cuidando dessa Vila do Arapixuna, tem época rapaz que tá um capinzar que vai daqui até o Tapajós. Eu tiro dinheiro deste meu borso pra limpar esse caminho que vai pra lá. Não tem uma viva arma que diga olha esse furo é  o furo do Agapito. Eu tenho 40 anos limpando esse furo não me deram nem purra, nem o nome me deram, são coisas que me revorta. Agora, só porque o Jacques Cousteau passou uma semana já deram a Amazônia pra ele.

**  Seu Agapito chegou na loja afobado, queria comprar uma camisa. Falou com a vendedora:

- Olha, me vê uma camisa dessa de pano fino que tão usando agora, que é novidade, porque sou muito calurento.

A moça foi lá e trouxe uma camisa de viscose e entregou pro seu Agapito. Ele pegou a camisa e foi experimentar. A camisa não fechava na barriga. A vendedora observou que era do tamanho P, e disse para o seu Agapito.

- Espere, vou pegar uma outra camisa que vai servir, essa aqui é tamanho P, a P não serve pro senhor, mas a G vai servir.

Seu Agapito retrucou.

- Não serve. Não teima comigo. Se eu to dizendo que a P não serve como a G vai servir?

- Claro que serve seu Agapito, a G é maior.

- Só se for na matemática de vocês, porque na minha não serve. Se a P que é purruda não serviu, como é que a  G de  gitita vai servir.

** Seu Agapito foi quem levou o primeiro aparelho de televisão para a vila. Estavam jogando Brasil e Espanha, Copa do Mundo de 1982. Em Arapixuna o pessoal assistia os jogos em frente a casa do seu Agapito, a TV colocada na janela. Foi quando sob o efeito da pinga começaram a pegar no traseiro um do outro, e teve início aquela baderna. Ele então, brabo falou:

- Olha, vocês até estavam assistindo a TV com carma e com decência, agora que vocês começaram na esculhambação eu vou retirar a televisão e fechar a janela.

Foi o que ele fez, tirou a televisão e fechou a janela. Não demorou a turma começou a gritar lá fora:

- Queremos TV, queremos TV, queremos TV.

- Rapaz, me deu tanta pena de ver aquela murtidão gritando queremos "te vê", queremos "te vê" que eu abri a janela e disse pronto me vejam.

 
   

** Seu Agapito pedalava na sua bicicleta pela avenida Mendonça Furtado. Quando chegou no cruzamento com a Barjonas de Miranda, de repente, deu de encontro com um rapaz que vinha afobado em sentido contrário.  Os dois caíram e começaram a discutir. O rapaz se levantou primeiro e gritou:

- Porra, qual é a tua cara?

- Rapaz, te acarma, não fica nervoso, a minha é aquela encarnada que tá ali.

 
   

** Colação de grau lá do Arapixuna, termino do Projeto Minerva. Os alunos foram para o colégio festejar o último dia de aula, seu Agapito tinha concluído com boas notas.

Na despedida a professora pediu que cada um escrevesse uma frase no quadro-negro.  Agapito tava ansioso pra escrever a sua. A professora então falou, vamos agora chamar um aluno que foi destaque no curso e um exemplo pra esta geração que tá vindo aí, que não quer estudar. Todo mundo ficou curioso, quem é? E a professora chamou Agapito de Andrade Figueira

– Pronto professora.

– Seu Agapito parabéns, o senhor foi o primeiro colocado, agora queremos que o senhor escreva aqui na lousa uma frase com o verbo hospedar.

- Mais professora, a senhora não tinha outro verbo pra escolher?

- Não seu Agapito, esse é um verbo muito comum

- Rearmente, de fato, é comum mesmo, mas agora nessa época é mais lá pra cidade né, porque aqui no sitio até que não se vê muito dessas coisas no inverno, mas eu vou já fazer uma frase.

Pensou, pensou e de repente pegou o giz e escreveu assim: Os perdar da bicicleta do meu filho Osvardo.

 
   

** Festa de Nossa Senhora de Santana, padroeira do Arapixuna. Seu Agapito era locutor oficial do som do arraial. Costumava abrir a programação falando o seguinte:

- Este é o serviço de arto-falante da nossa senhora de Santana com seus projetores de som instalados nas principais laranjeiras ao lado da igreja, ao microfone Agapito Figueira quem não acreditar que venha ver. Quem não acreditar de certo que venha ver de perto.

Nesse dia, Zé Gotinha, um comunitário, chegou com seu Agapito e disse:

- Eu queria que o senhor botasse uma mensagem pra mim.

Seu Agapito vendo que o homem estava bêbado, disse:

- Olha rapaz, aqui não se bota mensagem e quando se bota é de cinquenta miréis pra cima.

- Se é cinquenta miréis é comigo mesmo, pode botar. Ta aqui - meteu a mão no bolso cheio de dinheiro e pagou. Eu quero falar com a minha namorada.

- E quem é a tua namorada?

- É a Damiana - só que ele não sabia que Damiana era sobrinha do seu Agapito.

- Com quem que tu quer falar mesmo?

- Com a Damiana.

- Tu tem será uma foto dessa tar de Damiana, eu quero dá uma olhada.

- Mais o senhor anda meio apresentado, o senhor ta duvidando, ta pensando que caboclo mente - Meteu a mão no bolso tirou a foto e disse: é esta a minha Damiana, minha namorada.

Seu Agapito olhou e justamente era a sua sobrinha .

- Zé Gotinha, o quê que tu quer com a Damiana?

- Olha, tem mais ou menos uma semana que não falo com ela, meu nome é Antero, quero falar com minha namorada que eu estou com uma saudade demais, faz tempo que nós não se fala.

Onde ele queria falar com ela era um lugar escuro, seu Agapito não contou desgraça, pegou o microfone e começou a falar:

- Atenção muita atenção Damiana, minha sobrinha. Atenção muita atenção Damiana minha sobrinha, o teu namorado Antero, que tá bem aqui na minha frente, porre que só o diabo, te avisa que quer falar contigo passando o campo do Luso América, debaixo daquela laranjeira mais arta, na ilharga da casa do compadre Servito. Olha minha sobrinha só te digo uma coisa, vai te meter em rola vai, que já são meia noite e pra lá nem o diabo vê no escuro. Só te digo vai!

 
   

** Seu Agapito vai saindo da Rádio Guarany, chega um caboclo e diz:

- Seu Agapito o senhor conhece o Ademir (filho do Otávio Pereira, dono a rádio)?

- Eu conheço até a de quinhentos imagina a de mir.

 
   

** Seu Agapito vai passando perto da sede do Veterano quando o caboclo pergunta:

- Se Agapito o senhor sabe onde fica a Minha Lojinha?

- Ora purra, tu que é o dono da lojinha não sabe, como é que eu vou saber.

 
   

** Seu Agapito comentando futebol.

- Olha, falam tanto nesse tar de Zico, nesse tar de Romário, mas bom de bola mesmo é esse tar de Replai. Ele faz um gol, depois ele vorta e faz outro do mesmo jeito, às vezes mais ligeiro ou mais devagar que o primeiro.

 
   

** Seu Agapito foi comprar uma geladeira no crediário na loja do seu compadre e conterrâneo André Teixeira, na Loja Modelo. Conversando com a balconista:

- Eu quero levar uma geladeira dessas mudernas para o Arapixuna, mas quero pagar aos puquinho.

- Seu Agapito, infelizmente o senhor não pode comprar no crediário, o seu nome está no SPC.

- Olha já, eu sempre fui da Arena do meu cumpadre Ubardo, depois PSD, mas esse tar de SPC nunca fui. Eu nunca mudei de partido.

 
   

** Ia acontecer uma convenção do PDS no Arapixuna e seu Agapito foi fazer os convites e esqueceu de ir a uma determinada comunidade. Na festa da convenção era tudo de graça e em uma casa, mãe e filhas conversavam:

- Minha filha, vem cá, tu te lembra que quando teu padrinho quer voto para o Osvardo de Andrade ele sabe vim aqui na nossa casa. Agora que é pra gente participar de uma comédia ele não veio, ele esqueceu, mas só de "inxirida" nós vamos já lá participar dessa comedia, só pra nós fazer ele de besta.

Na hora da festa ali todo mundo alegre com seus crachás, com suas credenciais, as meninas ficaram ali de longe. Quando uma delas falou:

- Maninha, vamos lá com tio Agapito que eu já estou com fome.

- Mas de onde vocês são?

- Ah, o senhor não conhece nós não. Hum, quando o senhor quer voto pro Osvardo o senhor sabe ir na nossa comunidade. O senhor foi lá perto e não convidou nós.

- Ah, mas vocês me descurpe.

- Não tem nada de descurpe. Nós queremos comer e  nós não tem esse negócio de sei lá como é que chamam, esse tal de crachá, sei lá o que. Nós não tamos nem ligando para esse empavulamento de vocês, de modo que nós queremos comer. Olhe que nós viemos de remo de lá pra cá, nem motor deram pra gente, de modo que nós viemos se "inxirir" na comédia de vocês.

Seu Agapito olhou para elas.

- Mais como é que vocês disseram?

- É isso mesmo que o senhor escutou. Nós viemos aqui  se "inxirir".

- Olha, se vocês vieram "sem xiri" é melhor que vocês vortem e vão buscar esses bichinhos porque depois da meia noite nós vamos precisar deles.

 




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