Dona Dica Frazão foi a segunda mulher que entrevistei para o Projeto Memória Santarena, no dia 27 de junho de 1990. A primeira foi a professora Sofia Imbiriba, dia 23 de maio do mesmo ano, ela morando no Asilo São Vicente de Paulo.
Rolex Replica Watches Foi uma tarefa prazerosa entrevistar a artesã Dica Frazão. Primeiro porque ela gosta de falar, de contar detalhes da sua trajetória de vida; segundo porque possui uma memória fantástica, daquelas de lembrar detalhes tanto da infância como dos fatos atuais.
A conversa aconteceu à Rua Floriano Peixoto nº 281, onde ela reside até hoje e funciona o seu ateliê. A partir de 22 de junho de 1999 passou, também, a ser endereço do "Museu Dica Frazão".
De boa verve, imaginação fértil colocada à serviço da arte - razão da sua vida - vive rodeada de plumas, palhas, penas, sementes, cascas e entrecascas de árvores, cipós, produtos da natureza que com eles materializa seus sonhos que a tornaram uma divina artesã.
De olhos vivos e brilhantes, na época com 70 anos, demonstrava um vigor extraordinário, uma vontade de viver que nos deixou impressionado, eu e o Emir Bemerguy, companheiro de entrevistas. Queria mostrar tudo, falar de tudo, muitas vezes de forma insistente, a deixar bem claro que tinha gostado da ideia de ser entrevistada, de participar do Projeto Memória Santarena.
Em maio de 2014, quando foi para editar o livro "Dica Frazão, a divina artesã", fruto da transcrição da nossa entrevista de 1990, fui novamente conversar com ela, precisava de fotos e outros documentos para ilustrar a obra. Já aos 93 anos, a encontrei sentada em uma cadeira de rodas - devido a um problema na perna direita, mas em seu ateliê, com tesoura segura na mão, tranquila a trabalhar. Ainda sonhando, fazendo o que gosta e a deixa feliz: arte.
Fiquei emocionado ao encontrá-la tão bem disposta e lúcida. Passamos a conversar e ela foi desfiando lembranças sobre o nosso encontro de 1990, recordando detalhes daquele dia. Queria saber o que eu estava fazendo. Quando falei o porquê da minha visita ela abriu um sorriso de satisfação, de alegria, e disponibilizou o material que eu tinha ido buscar, com aquela boa vontade que é uma das suas marcas registradas, reconhecida por todos que a visitam. Isso, sem antes contar um pouco mais da sua vida.
Natural de Capanema, dona Dica só conhecia Santarém através dos livros escolares utilizados no início do século XX, sendo o mais famoso deles o “Paleographo, ou a Arte de Aprender a Ler a Lettra manuscripta para uso das Escolas da Amazônia”, que traçava leves pinceladas sobre a historia de Santarém. Chegou aqui em 1943, com 23 anos, casada, com filhos e, como o imperador romano Júlio César, veio, viu e venceu.
Seu artesanato há muito tempo ultrapassou as fronteira do Pará e do Brasil. Observando os vários livros de frequência dos que visitam seu ateliê para conhecer e adquirir seu artesanato, nota-se que ele se espalhou pelos estados brasileiros e exterior, principalmente a Europa.
Agraciada com vários títulos e honrarias, um dos seus grandes incentivadores foi o governador Fernando Guilhon, que através do Estado facilitou a divulgação de seu trabalho promovendo uma exposição no Teatro da Paz, em 1972. O trabalho de Dona Dica Frazão é admirado por seu esmerado acabamento, variedade de cores e beleza estética, um atrativo turístico para Santarém, a “Pérola do Tapajós”.
Dona Dica foi casada com Severino da Silva Frazão, considerado por alguns historiadores como responsável pela inclusão de Santarém na Área de Segurança Nacional. Tudo porque no dia 15 de fevereiro de 1969 assassinou o prefeito Elinaldo Barbosa dos Santos, na prefeitura, dentro do seu gabinete.
Elinaldo tinha substituído o prefeito interino vereador Jerônimo Diniz, que por sua vez tinha substituído o prefeito Elias Pinto, eleito em 1966 para o período 1967/71, mas cassado em novembro de 1967.
Minutos após ter assassinado friamente o prefeito Elinaldo Barbosa, Severino Frazão foi abatido a tiros por um sargento da policia militar, a sangue frio, dentro da residência do vigário da igreja de São Sebastião. Ao sair correndo da prefeitura para a casa dos padres perdeu a arma, mesmo sem representar perigo foi executado pelo militar. E assim, com a eliminação do Frazão, o assassinato do prefeito Elinaldo Barbosa não foi devidamente elucidado.
Sete meses após a tragédia - 12 de setembro de 1969 - foi assinado o Decreto Lei nº 866 que incluiu Santarém na Área de Segurança Nacional. Com a sua assinatura perdemos o direito de escolher nosso prefeito, que passou a ser nomeado pelo Presidente da República, depois pelo Governador do Estado. Excrescência que durou até 1985.
Ano passado Dona Dica me telefonou, precisava conversar comigo. Como o livro "Dica Frazão, a divina artesã" se restringiu a relatar sua vida de artesã, ela queria continuar a entrevista para poder contar o drama que foi a sua infância, adolescência e o relacionamento com, segundo ela, o doentio marido Severino Frazão.
No dia 12 de dezembro de 2015 iniciei com dona Dica nova série de entrevistas em que ela conta sua longa vida de aventuras e sofrimentos. Fiquei mais uma vez admirado com a sua capacidade de relembrar fatos da sua infância, sua odisseia até chegar a Santarém e desembarcar em frente a Igreja Matriz.
Filha mais velha de um agricultor, ficou órfã de mãe aos 12 anos de idade. Quando completou 14 anos seu pai saiu de casa. Se despediu dizendo que voltaria em três dias e sumiu. Deixou para a filha mais velha os sete irmãos mais novos para ela criar. Ao completar a narrativa da atitude inesperada do pai, me disse que só não se transformou em menina de rua porque Deus lhe deu forças para suportar a barra e encontrar o caminho da vida digna. Em breve o ICBS irá editar a segunda parte da sua história de vida.
O destino colocou a artesã Dica Frazão no nosso caminho. Precisamos reconhecer e dar mais valor aos seus trabalhos. Alguns deles foram presenteados à rainha Fabíola, da Bélgica, ao Papa João Paulo II, e ao presidente Juscelino Kubitschek. Dona Dica convive atualmente com Pedro Olaia, ex-jogador de futebol, hoje com 73 anos.
O Museu Dica Frazão é acanhado: dentro dele existem três portas: a da esquerda dá acesso ao seu ateliê; a da direita ao museu onde ficam expostas as peças de arte; a da frente à copa e cozinha.
Sua arte merece um espaço maior e melhor, digno da divina artesã que é. O que será do museu após sua partida? Afinal no dia 29 de setembro estará completando 96 anos. Esperamos que ainda demore mais uns pares de anos em nossa companhia, mas a vida é finita.
Os museus são os responsáveis por preservar a história e a cultura da humanidade. Com essa denominação podemos incluir centros culturais, centros de ciência, jardins zoológicos, parques etc. Instituições caracterizadas como espaços de educação não-formal.
Santarém é carente deles.
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