Humor e ironia - 04.04.2012


Em 1968, quando deixei Santarém e fui estudar e jogar futebol em Belém foi que tomei conhecimento da genialidade artística de Millôr. O golpe militar estava em efervescência, o AI-5 funcionando a pleno vapor. Nas faculdades, alunos considerados perigosos comunistas infiltrados no meio estudantil eram presos todas as vezes que uma autoridade fardada vinha visitar Belém. Presos incomunicáveis, até que a visita retornasse para a capital federal.

  Foi nesse ambiente que em 1969, ano particularmente duro do regime militar, tomei conhecimento da existência do Pasquim, tablóide que nasceu da criatividade e irreverência de Ziraldo e Jaguar, secundado por outros “cobras” da ironia e bom humor.

Lia com prazer tudo o que era produzido por eles, pois representava uma nova forma de jornalismo que não conhecíamos por aqui, principalmente por azucrinar a ditadura, coisa inconcebível para os jornais do eixo Rio/São Paulo que, por conveniência ou censura, permaneciam ainda alinhados com o poder que emanava de Brasília. E eram eles que repercutiam as notícias pelo país.

Comprava o Pasquim na banca do Plínio, torcedor do Paysandu, localizada na Av. Presidente Vargas, em frente ao prédio dos Correios. Após ler, enviava para o Boanerges Sena em Santarém, que passou a me cobrar quando atrasava alguma remessa. Isso até 1974, quando aos 56 anos o alfaiate foi tragado pelo cigarro.

Do Pasquim passei para os livros. Naquela época, ler Millôr deixou de ser um passatempo e passou a ser quase que obrigação. Suas frases curtas soavam como tratados de filosofia, sociologia, de política. E continuam atuais. Sem prazo de validade, não prescrevem nem perdem força: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

Nesse mesmo período, Nelson Rodrigues, o “Anjo Pornográfico”, desnudava as entranhas da elite carioca e brasileira com “A vida como ela é”, onde mostrava seus incestos, pedofilias e homossexualismo que todos fingiam que não existiam entre eles; João Saldanha, o “João sem Medo”, revelava o submundo da cartolagem da bola com “Os subterrâneos do futebol”, do qual Ricardo Teixeira é o símbolo maior; enquanto Millôr, o gênio do humor inteligente, polemista, democrata extremado, nos induzia a pensar: “Livre pensar, é só pensar.”

Para ele, não existia sabedoria, conceito ou verdade que não admitisse reexame ou nova interpretação. Ele conseguia transformar verdades consumadas em dúvidas que levavam as pessoas a olharem o mundo sob novas perspectivas: “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. E Millôr nos advertia que Cristo andou com Judas.

Pegava pesado com a esquerda de qualquer quadrante: “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.”

“Rouba já! Amanhã pode ser ilegal”. Os atuais noticiários da imprensa mostram que esse amanhã do Millôr está ficando cada dia mais distante.

“A lei é a melhor forma de se burlar a justiça”. A sentença do advogado Amilcar Guimarães no processo do Lúcio Flávio Pinto ilustra bem esse pensamento do Millôr.

Em 1970, um ateu a caminhar entre as idéias sobre o progresso da humanidade: “A verdade é que todo o progresso da humanidade não depende, como querem religiosos de um lado e fascistas de outro, de crenças profundas, de princípios arraigados, de religiões místicas ou econômicas. Todo o progresso da humanidade se deve unicamente à descrença, ao ceticismo. Desconfiar é progredir.”

No mesmo ano, discorrendo sobre a importância da liberdade: “Quem quer a liberdade? A liberdade exige decisões pessoais para todos os dilemas diários: saio, não saio, vou, fico, o que é que eles estarão querendo dizer com isso?, como é que eu devo agir em função disso? A cada ato, cada desastre, cada notícia, corresponde uma atitude definida e um esforço para que o ser normal não foi adequado. Só um tarado (Liberal) aprecia a liberdade total. O homem médio prefere se entregar a prepostos, ama despachantes, obedece a mestres, serve a diretores, mitifica líderes. A própria constituição humana está talhada para a limitação. É evidente que Deus fez o homem com a cabeça maior do que o corpo para ele não poder passar por entre as grades.”

Quer coisa mais atual do que isso?

Por fim, pegando pesado com os políticos: “Meu sonho é que algum deputado contraia aftosa… porque nesses casos, tem-se que sacrificar o rebanho.”

Alguém já disse que devemos tratar o humor irônico e inteligente do Millôr como gênero de primeira necessidade. Primeiro porque ensina o homem tenso e apressado a sorrir de novo. Depois, porque recorda a todos nós que é possível filosofar em meio à luta pela sobrevivência. Não importa se você acredita na teoria da evolução de Darwin ou no mito de Adão e Eva.




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