Promessas dos romeiros do Círio
A procissão do Círio em Santarém acontece desde 1919. Estamos a comemorar o centésimo Círio.
O de Belém comemorou 225 anos, mas o mais antigo é o de Vigia. No ano de 1697, o padre jesuíta Serafin Leite já relatava a existência em Vigia de romarias em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Lá se vão 321 anos.
Vigia, fundada em 06 de janeiro de 1616, é a mais antiga cidade do Pará. Seis dias mais velha que a capital Belém, que festeja sua fundação no dia 12 de janeiro do mesmo ano.
A inclinação religiosa dos paraenses, como de todos os amazônidas, é herança herdada dos colonizadores portugueses. Hoje as festividades possuem os mesmos símbolos: romaria, berlinda, corda, carros, fogos de artifício, promessas, etc...
Todos os anos, movidos pela devoção, chegam a Santarém romeiros vindos dos mais diversos furos, paranás e vilas da região, que se juntam aos peregrinos de Santarém e das cidades do Oeste Paraense e de outros Estados, para juntos estreitarem essa relação de amor, fé e esperança que sentem por Nossa Senhora da Conceição.
Formam uma multidão que se reúne para agradecer os milagres e graças alcançadas, renovando pedidos por novos milagres, graças e bênçãos. Muitos seguem a romaria descalços. Outros pagadores de promessa carregam pequenas casas na cabeça, cruzes de madeira nos ombros, vestem seus filhos de anjos, puxam a corda, distribuem água, carregam objetos de cera que representam curas alcançadas - mão, braço, pé.
A superar os limites da dor, em Belém alguns fiéis percorrem de joelhos toda a procissão.
Promessa é o compromisso de fazer alguma coisa. Caso a súplica seja atendida, o fiel se compromete a pagar com uma penitência escolhida por ele próprio. Aos incrédulos, pode ser visto até como uma troca entre o suplicante e a santidade. Alguns pais fazem suas súplicas para os filhos cumprirem a penitência. Assim, crianças vestidas de anjo acompanham o Círio sem nada entender do que acontece em sua volta, o motivo de estar ali paramentada de querubim.
A paraense Eneida de Morais (1904/1971), jornalista e escritora, no seu excelente livro de memórias "Banho de cheiro", editado em 1962, conta sua aventura como pagadora de promessa feita pela avó.
"Já vi muitos anjos bonitos, em procissões. Minha avó era muito católica e fazia muitas promessas; promessas para isto e aquilo e como me adorava – fui sua primeira neta – todas as suas promessas eram pagas por mim, pequenina e loira. Imagine: - loira.
Era engraçada, minha avó. Nunca fez uma promessa para que ela própria a cumprisse; a vítima era eu. Saí uma vez, no Círio de Nazaré, pagando uma promessa de vovó: vestida de anjo, todo branco, asas enormes, túnica muito clara, tanto quanto as asas, um resplendor equilibrando-se sobre a cabeça, sandálias como as dos santos. A senhora se lembra de uma casa que existiu em Belém, especialista em asas e adornos para anjos? Sempre quis saber quantas penas de patos eram necessárias para fazer aquelas asas tão grandes.
Também me lembro que a tática empregada para o perfeito equilíbrio do resplendor não deu muito certo. Eu, anjo, tive muitas vezes que segurá-lo para não cair. Mas vovó contava que, com quatro anos, fui um verdadeiro anjo de tão bonita, desfilando pelas ruas da cidade, absolutamente compenetrada de meu papel. Pode crer: ainda que não pareça, também já fui anjo e um anjo muito digno, dizem".
Quando criança eu acompanhava o Círio em companhia do pai Boanerges. Lembro que no café da manhã nos era servido dois ovos quentes para que suportássemos o "sacrifício" da caminhada. A mesma dieta acontecia nos desfiles da semana da pátria.
Nossos pais não eram de fazer promessas, nunca tive que acompanhar a procissão para pagar promessa deles ou minha. Nossos problemas não eram complicados a ponto de parecerem impossíveis de serem resolvidos sem promessas.
Para mim, a parte mais comovente da procissão era quando a imagem se aproximava da Praça da Matriz.
Tempos idos, Dom Tiago com a imponência de um Cardeal caminhava com a multidão, que começava a entoar numa vibração que me emocionava, o hino da festa.
Era o clímax do Círio de Nossa Senhora da Conceição.
Nessa época, 50, 70 mil fiéis a ressoar:
"A cidade outra vez se embandeira
Ganha enfeites de alegres quermesses
Chega a festa de sua Padroeira
Grato ensejo de risos e preces".
Era de arrepiar!
Obra musical de Emir Bemerguy e seu compadre Isoca, o hino foi composto a pedido de Frei Vianney Miller em 1971.
Em 1992, para o Projeto Memória Santarena, entrevistei o Emir em sua residência.
Um dos assuntos da nossa conversa foi o Hino da Padroeira e a chegada do Círio na Praça da Matriz.
Perguntei-lhe o que sentia quando escutava a multidão a entoar o hino. Ele me disse:
"Eu não consigo cantar. Eu só não abro num choro alto porque eu me domino, mas eu fico com o rosto ensopado de lágrimas.
Já fiz um pedido num círio passado - me deram o microfone certo momento - que quando eu morrer eu gostaria que meus irmãos ao ouvirem o hino da festa rezem pelo menos uma Ave Maria por mim.
E eu acho que se eu já fiz alguma coisa boa e útil na vida foi exatamente aquele hino. Eu não tenho dúvida de que eu devo ir pro céu. Nossa Senhora vai me puxar prá lá por causa desse hino.
Então é o momento supremo de emoção na minha vida quando eu vejo o meu povo cantar o hino que eu fiz. É realmente um negócio arrasador, e eu não consigo cantar. "
No acervo do ICBS existe boa coleção dos Programas da Festa de Nossa Senhora da Conceição. O mais antigo de 1926. Fonte constante de pesquisas de alunos, professores e imprensa.
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